Ciúmes costuma ser o primeiro argumento usado contra a não-monogamia (ou será “mas e as crianças?”). Enfim, esse sentimento é visto como uma reação biológica fora do nosso controle. Dessa forma, o ciúme se torna geralmente inquestionável: você pode acusar uma pessoa de ser irracionalmente ciumenta, mas é muito mais difícil repreender seu ciúme como fabricado, estratégico ou condicionado, embora possa muito bem ser qualquer uma dessas coisas. A pessoa com uma resposta ciumenta não precisa se justificar, além de apontar as ações da outra pessoa que tornam o ciúme “apropriado”. A própria reação de ciúme é considerada inevitável, e, de fato, as pessoas que não experimentam ciúme são postas em dúvida sobre sentirem amor ou consideradas deficientes de alguma forma (doideira, né?).

O ciúme é um problema não apenas  para quem sente, mas também para a outra pessoa e para a relação em si. A pessoa ciumenta, muitas vezes culpa o ciúme nas ações do outro ou na terceira pessoa que é vista como ameaça, em vez de assumir responsabilidade pelos próprios sentimentos. É geralmente entendido que você pode “deixar alguém com ciúmes”.

Não vemos a solução como residindo dentro da pessoa ciumenta na maioria dos casos. Em vez disso, a responsabilidade cultural de resolver o ciúme recai sobre o parceiro. Normalmente esperamos que o parceiro de uma pessoa ciumenta ajuste seu comportamento para amenizar o ciúme. Às vezes a solução é atribuída até mesmo à terceira pessoa que é percebida como rival.

Algumas pessoas afirmam que o ciúme é uma abertura para pedir ao parceiro para mudar o comportamento  Outras relutam em dizer que estão com ciúme porque isso cria uma abertura para inversão de poder dentro da relação. De modo geral a galera acha que tem licença para agir de certas maneiras sob o pretexto de impedir que a outra pessoa  traia. Essas ações são geralmente reconhecidas como tentativas ciumentas de controle, e seu objetivo é mudar o comportamento da outra pessoa: separando ela dos amigos, reduzindo o tempo que passam separados e influenciando ela a mudar o comportamento que desencadeia o ciúme na pessoa controladora.

Olha que doideira: uma emoção que é de certo modo vaga, quando sentida por uma pessoa, pode causar uma treta que precisa ser corrigida pela outra pessoa(!) por meio de ações específicas. Em outras palavras, o ciúme é na verdade um mecanismo de controle, potencialmente fornecendo poder sobre as interações do parceiro com outras pessoas, com o mundo exterior e consigo mesmo.

Além de exigir mudanças diretamente de um parceiro, uma pessoa ciumenta recebe licença para fazer coisas normalmente consideradas anti-sociais: monitorar a pessoa, separá-la dos outros, agir de forma violenta, etc. Embora a maioria das pessoas considere essas ações irracionais, elas ainda são supostamente compreensíveis quando uma pessoa está com ciúmes.

O ciúme também pode ser usado para um tipo diferente de controle. Podemos acusar nossos parceiros de ciúme para desconsiderarmos  o que estão dizendo ou dar a nós mesmos mais liberdade para tomar ações que eles podem não aprovar. Esta acusação de ciúme pode se tornar uma abertura para controlar o ciumento mandando ele se acalmar, parar de se meter, ser mais sensato ​​e assim por diante. Além disso, acusar um parceiro de ciúme irracional pode fornecer um conjunto complementar de liberdades para as restrições causadas pelo ciúme. Este mecanismo inverso é  uma forma de resistência ao mecanismo direto do ciúme: ele opera acusando alguém de usar o mecanismo direto.

Existe ainda um  terceiro mecanismo de poder do ciúme, onde um dos parceiros tenta  deixar o outro com ciúme de propósito. Ao induzir ciúme, a pessoa espera conferir se o relacionamento é forte (ciúme como evidência de amor) ou para tirar mais proveito disso (porque a pessoa ciumenta prestará mais atenção a ela). Este mecanismo é novamente  uma forma de resistência ao mecanismo direto, uma vez que ele reverte o fluxo de poder.

CIÚMES E NÃO-MONOGAMIA

Se uma pessoa decide buscar a não-monogamia, o ciúme geralmente muda de uma estratégia de poder útil a uma séria desvantagem. Enquanto o sentimento possa diminuir já que está ligado à monogamia, o condicionamento do ciúme não vai sumir de um dia pro outro e as pessoas podem ter dificuldade em desistir dos mecanismos de poder. Portanto, a cultura não-monogâmica tende a expor o mecanismo de ciúme e implantar uma série de técnicas destinadas a revelar  e resistir  à essa dinâmica de poder. A não-monogamia é, portanto, um lugar privilegiado para estudar como o ciúme opera e as estratégias para neutralizá-lo.

Dentro da não-monogamia, nós reconhecemos que o ciúme é uma resposta condicionada  que foi aprendida e, portanto, pode ser desaprendida ou melhor administrada. Nós aprendemos e nos esforçamos para desconstruir esse sentimento, analisando o que está por trás dele: medo, insegurança, baixa auto-estima? Ou qualquer outro problema no relacionamento. Dessa forma, o ciúme é quebrado em outras emoções ou problemas que devem ser resolvidos de outra maneira mais saudável e sensata.

Além disso, a responsabilidade de lidar com o ciúme não é mais do parceiro e sim da própria pessoa ciumenta (donas e responsáveis pelo próprio ciúme). As pessoas sentam e conversam abertamente pra descobrir o que está errado e o que fazer a respeito.

Já que o  ciúme é um mecanismo de poder, a desconstrução dele é vista como redução do exercício de poder entre as pessoas numa relação. Em outro post falarei sobre algumas estratégias para lidar com esse sentimento.

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