O amor, comumente entendido como um sentimento natural e universal, é na verdade uma construção histórica e social. Ao longo da história do ocidente, o amor assumiu diferentes configurações, sendo moldado conforme os valores e as estruturas sociais de cada época. No século XIX, com o advento do Romantismo, emerge a noção idealizada de amor romântico, que exerce até hoje grande influência sobre os relacionamentos afetivo-sexuais.

O amor romântico traz uma série de características que o distinguem de outros tipos de amor: ele é vivido de forma intensa e passional, baseado no desejo de fusão com o outro, como se fossem “almas gêmeas”. Envolve a crença no “amor à primeira vista”, em que o destino predetermina o encontro com a pessoa amada. O amor romântico tende à exclusividade, pois a ideologia diz que só é possível amar uma pessoa por vez, com quem se deseja compartilhar tudo.

Esse ideal amoroso se popularizou no século XX através da indústria cultural, em especial o cinema. Filmes, novelas e canções difundem o mito de que o amor romântico é o caminho para a felicidade e o propósito mais importante da vida. Ele promete a fantasia do “felizes para sempre” quando encontramos nossa “cara-metade”.

No entanto, na prática, o amor romântico gera uma série de problemáticas. A começar pela noção de que ele é predestinado e deve surgir espontaneamente quando conhecemos a pessoa “certa”, o que tira do indivíduo a responsabilidade por construir e cuidar do relacionamento. Além disso, a busca incessante pela outra metade cria uma sensação crônica de incompletude e solidão.

O amor romântico é um dispositivo ideológico que sustenta o sistema patriarcal e está na raiz de diversas violências e opressões de gênero. Ao definir papéis rígidos para homens e mulheres, reforça a dominação masculina e limita a autonomia feminina. 

Outro grave problema é a equivalência que estabelece entre amor e possessividade. Na lógica romântica, amar significa possuir o outro sem reservas, controlando seus desejos e ciumentamente vigiando suas relações. Por isso, o amor romântico é um dos pilares da monogamia compulsória.

A monogamia, por sua vez, como bem disse Brigitte Vasallo, não é apenas uma prática, mas uma imposição social e jurídica que organiza hierarquicamente as relações afetivas determinando padrões de conduta amorosa e sexual.

Historicamente, a monogamia surgiu associada à propriedade privada, como forma de controlar a sexualidade feminina para garantir a legitimidade dos herdeiros homens. Era uma exigência unilateral, imposta apenas às mulheres. Já os homens tinham certa liberdade para relações extraconjugais.

Com o amor romântico, a monogamia adquiriu uma justificativa emocional. O ideal do amor eterno e fusional parecia congruente com a exclusividade monogâmica. O casal apaixonado não teria necessidade ou vontade de amar outra pessoa. Esse discurso serviu para naturalizar a monogamia como modelo moral superior.

Assim, o amor romântico se constitui no principal sustentáculo ideológico da monogamia na modernidade. Seus mitos fornecem bases emocionais para a aceitação da lógica monogâmica, inclusive com seus aspectos opressivos e violentos.

Questionar o amor romântico é indispensável para desnaturalizar a monogamia compulsória e inventar novas possibilidades éticas de relacionamento. Abrir mão do ideal romântico não significa abdicar do amor, mas vivê-lo de forma mais consciente, horizontal e responsável. Amor não precisa ser sinônimo de posse, exclusividade ou sofrimento. Pode ser cultivado também nas amizades, nas famílias escolhidas e em redes de apoio mútuo.

Felizmente, na contemporaneidade, surgem novas sensibilidades que buscam outra qualidade de presença e vínculos mais livres e plurais. São visões não-monogâmicas que, em vez de partir de pressupostos abstratos sobre o amor, privilegiam a atenção à singularidade das pessoas e relações.

Promover relacionamentos mais saudáveis e igualitários certamente requer superar o ideal do amor romântico. Apesar de seu apelo emocional, ele se revela limitante e opressivo. Somente combinando afeto e reflexão crítica poderemos construir uma cultura amorosa emancipatória, para além dos mitos e dos sistemas de dominação.

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